
O debate sobre a possibilidade de anistia aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023 trouxe uma certeza à tona: a Constituição de 1988 proíbe esse tipo de perdão. A própria Carta, no artigo 5º, inciso XLIII, determina que crimes de terrorismo, tortura, tráfico e hediondos são insuscetíveis de anistia. É um comando claro e direto.
Se essa é a interpretação válida para hoje, então precisamos enfrentar um paradoxo histórico: a anistia concedida em 1979. A Lei nº 6.683, chamada de Lei da Anistia, foi fruto de um acordo político na transição do regime militar. Nela, perdoaram-se tanto os opositores armados, que cometeram crimes como sequestro de diplomatas (o caso mais emblemático foi o do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em 1969), guerrilhas e assaltos a bancos para financiar ações terroristas, quanto os agentes estatais responsáveis por torturas, desaparecimentos forçados e execuções sumárias.
Na época, vendeu-se a ideia de uma anistia “ampla, geral e irrestrita”. Mas a realidade é que ela cobriu crimes que, à luz da Constituição atual e do Direito Internacional, jamais poderiam ter sido anistiados. Tortura e desaparecimento forçado são crimes contra a humanidade, imprescritíveis. O mesmo vale para terrorismo, sequestros e atentados praticados por grupos armados.
O Supremo Tribunal Federal, em 2010, decidiu que a anistia de 1979 foi recepcionada pela Constituição de 1988, sustentando tratar-se de um “pacto político”. Mas Direito não se confunde com conveniência política. Se uma anistia que se discute em 2023 é considerada inconstitucional, também o era a de 1979. A diferença é que, no passado, prevaleceu a vontade de acomodar interesses e não a exigência de justiça.
E aqui está o ponto central: não pode haver dois pesos e duas medidas. A justiça não pode punir uns e proteger outros. Se a anistia de hoje é declarada inconstitucional, deve-se de imediato apreciar também a de 1979. E, sendo inconstitucional em sua essência, todos os beneficiados por ela — de ambos os lados — que ainda possam responder por seus atos devem cumprir suas penas. Crimes de sequestro, de terrorismo, de tortura e de desaparecimento forçado não prescrevem. Portanto, não há desculpa para manter a impunidade.
Não se trata de revanchismo, mas de coerência. O Brasil não pode viver sob a lógica da seletividade, em que a Constituição vale para uns e não para outros. A democracia exige uniformidade de tratamento. Quem defende a inconstitucionalidade da anistia para os atos de 8 de janeiro deve, pela mesma lógica, defender a revisão da anistia de 1979.
Ou temos um Estado de Direito que pune igualmente, ou seguimos reféns de um pacto político que sacrifica a justiça em nome da conveniência. O tempo não legitima a inconstitucionalidade. Se a Constituição é a mesma para todos, então que ela se cumpra: não há anistia para crimes imprescritíveis. A justiça não pode ser seletiva, porque ou é para todos — ou não é justiça.
Leonardo Cruz, advogado



