
Em diversos estados e na maioria dos municípios brasileiros, os partidos políticos atuam por meio de comissões provisórias — estruturas temporárias que substituem diretórios definitivos na organização local da legenda. Essas comissões, embora legítimas, estão submetidas a regras rígidas de vigência e funcionamento, conforme a Resolução TSE nº 23.571/2018 e a Lei nº 9.096/95 (Lei dos Partidos Políticos).
Longe de questionar a autonomia partidária ou de promover um debate sobre a eventual perpetuação dessas comissões nos estados ou municípios, este artigo se propõe a abordar um dilema prático e jurídico decorrente da caducidade das comissões provisórias — fenômeno que, a princípio, constitui uma consequência legal natural da limitação temporal imposta à sua existência.
Em muitos casos, o objetivo do grupo dominante em nível estadual é esvaziar o poder local, inviabilizar decisões da ala adversária ou reconfigurar o controle político da legenda no município. O mesmo se aplica, ainda que com menor frequência, às disputas entre instâncias nacionais e estaduais, considerando que, em nível estadual, há maior presença de diretórios definitivos, a depender do partido. O problema é que essa estratégia pode sair cara — e quem paga a conta é o próprio partido, tanto do ponto de vista financeiro quanto institucional e participativo.
Da obrigatoriedade de prestação de contas
No que diz respeito especificamente à prestação de contas, a obrigação constitucional encontra-se prevista no artigo 17 da Constituição de 1988, e é disciplinada pela Lei nº 9.096/1995, no Capítulo I do Título III, com exigência anual de apresentação até 30 de junho do exercício seguinte. A Resolução TSE nº 23.604/2019 regulamenta de forma minuciosa o exame técnico dessas contas pelos órgãos da Justiça Eleitoral.
Impactos da caducidade na capacidade jurídica do partido
Quando a comissão provisória caduca, ela perde automaticamente sua anotação no Sistema de Gerenciamento de Informações Partidárias (SGIP) do TSE, ficando suspensa sua capacidade formal de representação. Com isso, torna-se inviável qualquer atuação em nome do partido. Ou seja, essa paralisação afeta diretamente a capacidade do partido de assinar documentos, prestar contas anuais e eleitorais, cumprir diligências em processos de prestação de contas em andamento, bem como honrar compromissos financeiros e contratuais com fornecedores e prestadores de serviços.
O órgão partidário estadual ou municipal que se encontra caducado fica impedido de cumprir obrigações requeridas pelos setores técnicos da Justiça Eleitoral mesmo após o encerramento do exercício financeiro, como a entrega de documentos de comprovação fiscal ou contratual faltantes, a correção de inconsistências apontadas ou a comprovação de quitações pendentes. Nesses casos, a Justiça Eleitoral, sempre que possível, realiza uma notificação à instância superior do partido — geralmente por publicação no Diário da Justiça Eletrônico. Caso não haja qualquer manifestação, as contas podem ser consideradas não prestadas ou desaprovadas, com base na análise técnica prevista na norma de regência.
Nos termos do artigo 47 da Resolução TSE nº 23.604/2019, o julgamento das contas como não prestadas acarreta a perda do direito ao recebimento de recursos provenientes tanto do Fundo Partidário quanto do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, além da suspensão do registro ou anotação do respectivo órgão após decisão definitiva em processo que garanta o contraditório e a ampla defesa (STF ADI nº 6.032/DF). Ademais, tal decisão acarretará a obrigação de devolução integral dos valores já recebidos ou repassados ao partido oriundos dos mencionados fundos.
Já a desaprovação das contas apresentadas pelo partido político implicará a aplicação de sanção consistente na devolução dos valores apontados como irregulares, acrescidos ainda de multa que poderá atingir até 20% do montante irregularmente utilizado ou registrado, conforme estabelece o artigo 37 da Lei nº 9.096/95.
Efeitos políticos e jurídicos do cancelamento de órgãos partidários
Além dessas penalidades de impacto financeiro e institucional direto sobre o partido, a inexistência de um órgão vigente prejudica o acesso de novos filiados e compromete a atuação do partido e seus partícipes nos pleitos seguintes. Ou seja, a falta de anotação no SGIP ocasionará consequências drásticas e irremediáveis, dada a impossibilidade de realizar convenções partidárias e registar candidaturas de filiados que legitimamente pretendem disputar eleições, no pleno exercício dos seus direitos políticos previstos na Constituição Federal do Brasil.
Noutra ponta, a ausência de um órgão provisório formalmente vigente também gera consequências imediatas para os advogados por ela constituídos. Isso ocorre porque, desde a entrada em vigor da Lei nº 12.034/2009, a prestação de contas perante a Justiça Eleitoral, antes considerada um procedimento administrativo, assumiu natureza jurisdicional (§6º, artigo 37 da Lei nº 9.096/95), ficando, portanto, subordinada ao princípio constitucional da indispensabilidade do advogado para o exercício da jurisdição (artigo 133, caput, da Constituição).
No cenário posto, sem poderes de representação válidos, esses profissionais se veem impedidos de praticar atos processuais em nome do partido, como assinar petições, responder a intimações ou cumprir prazos em processos judiciais. Essa limitação não apenas compromete a defesa técnica da agremiação, mas também pode repercutir negativamente na imagem profissional dos advogados envolvidos, que ficam sujeitos a interpretações equivocadas de inércia ou descumprimento processual. Em situações mais graves, a impossibilidade de atuação pode gerar questionamentos perante a própria OAB, especialmente quando há prejuízo processual evidente ou suposta violação ao dever de diligência profissional. Trata-se, portanto, de mais um aspecto delicado da caducidade, que transcende o universo partidário e atinge também o exercício da advocacia eleitoral de forma concreta.
Caducidade estratégica: vantagem política ou autossabotagem institucional?
Em contextos de disputas internas, manter propositalmente a caducidade de uma comissão provisória como forma de enfraquecer ou excluir um grupo adversário pode, à primeira vista, parecer uma vantagem política. No entanto, na prática, pode se revelar uma verdadeira armadilha institucional. Como dito, a caducidade planejada ou negligente interrompe compromissos financeiros e administrativos em curso, gerando penalidades fiscais, riscos regulatórios e comprometimento da prestação de contas, cujo resultado pode ser a declaração de contas não prestadas ou desaprovação das contas.
Diferentemente da constituição de diretórios definitivos, que exigem a ampla participação dos filiados, a designação de uma comissão provisória é considerada uma decisão interna corporis que, por si só, não atenta contra a democracia interna. Portanto, deve-se respeitar a autonomia partidária assegurada no artigo 17, §1º, da Constituição Federal, que permite aos partidos definir livremente sua estrutura, funcionamento e organização.
Contudo, em algumas situações, essa autonomia não deve ser absoluta. Não se pode admitir que o pretexto de garantir a liberdade organizacional do partido sirva para romper a continuidade institucional de suas obrigações legais, sobretudo aquelas que impactam o processo eleitoral e a lisura das contas públicas.
Embora a Constituição assegure ampla autonomia às agremiações, a legislação eleitoral impõe limites práticos a essa liberdade, como se vê no artigo 15-A da Lei nº 9.096/95, incluído pela Lei nº 12.034/2009. Este dispositivo estabelece que a responsabilidade por dívidas — inclusive trabalhistas — recai exclusivamente sobre a esfera do partido que deu causa à obrigação, seja ela municipal, estadual ou nacional. A regra visa evitar que outras instâncias da sigla sejam indevidamente responsabilizadas, restringindo a autonomia na medida em que obriga o cumprimento de obrigações financeiras por quem efetivamente contratou.
A interpretação do dispositivo foi consolidada pelo Supremo Tribunal Federal, que, ao julgar a ADC 31/DF em 2021, reconheceu a constitucionalidade da norma e seu alinhamento à estrutura federativa e à autonomia relativa dos diretórios. A limitação imposta pelo artigo 15-A é reforçada pelo artigo 29, §§ 3º e 4º da Lei nº 9.504/97, que vincula a regularidade das contas à diplomação de candidatos, ampliando os efeitos práticos das inadimplências financeiras e contábeis no âmbito partidário.
Diante de tais ameaças, é fundamental que, mesmo em meio a disputas internas, os partidos mantenham o órgão regularmente anotado, ainda que provisório, até que se regularize toda a situação administrativa e contábil. No caso de caducidade, deve-se providenciar imediatamente nova anotação ou a constituição de diretório definitivo, restaurando a capacidade de representação legal do partido perante a Justiça Eleitoral e demais órgãos públicos.
Para evitar a caducidade proposital e mitigar os riscos institucionais decorrentes das divergências internas, é recomendável adotar boas práticas de governança partidária, tais como a criação de comitês internos específicos para monitorar a vigência e a regularização das comissões provisórias, além da implementação de mecanismos eficazes de mediação e resolução pacífica de conflitos entre grupos divergentes. Essas iniciativas contribuem não apenas para manter a continuidade institucional, mas também para preservar a credibilidade e a capacidade operacional dos partidos junto à Justiça Eleitoral e à sociedade.
Essa é a única forma de garantir a resposta a diligências técnicas, a execução de pagamentos pendentes, o cumprimento de obrigações legais e a participação regular do partido no processo político.
Conclusão
Embora o tema pareça polêmico, é possível afirmar que o uso estratégico da caducidade de comissões provisórias, motivado por conflitos internos, pode representar uma forma grave de autossabotagem institucional. À medida que o partido perde legitimidade formal — pela caducidade ou falta de renovação — torna-se incapaz de cumprir obrigações essenciais, como a prestação de contas, o pagamento de fornecedores e a manutenção de sua estrutura mínima de atuação. Os riscos regulatórios se agravam, as consequências financeiras se multiplicam e o partido compromete sua viabilidade política no estado ou município, inclusive em eleições futuras. Assim, o zelo pela regularidade dos órgãos partidários locais deve ser uma prioridade, mesmo em tempos de disputas internas. A democracia interna pode conviver com a autonomia pela troca de comando de órgãos provisórios, mas jamais com o descompromisso institucional.
Deixe um comentário