
Desde o início dos anos 2000, diversos municípios brasileiros passaram a recorrer ao Poder Judiciário para reivindicar, individualmente, os valores que deixaram de ser corretamente repassados pela União, a título de complementação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), no período compreendido entre 1998 e 2006. As ações visavam a recomposição das verbas constitucionais, com atualização monetária e incidência de juros de mora, diante da constatação de que o valor mínimo por aluno/ano, fixado em legislação, vinha sendo calculado de forma inferior ao devido.
Arquivo/Agência Brasil
Esse movimento judicial ganhou um importante capítulo em dezembro de 2015, quando transitou em julgado a sentença proferida em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em São Paulo, nos autos do processo nº 0050616-27.1999.4.03.6100, que reconheceu a conduta ilícita da União e determinou a reparação das perdas sofridas.
Esses marcos representam não apenas um resgate de recursos vultosos para a educação pública, mas também uma afirmação do papel essencial da advocacia especializada na concretização do direito à educação e na garantia do pacto federativo.
E os acordos do Fundef: o que está acontecendo?
A Advocacia-Geral da União (AGU), por meio do Plano Nacional de Negociação nº 13[2], passou a celebrar acordos em ações relativas ao Fundef, tanto em sentenças individuais quanto em cumprimentos de sentença fundados no referido título coletivo obtido pelo MPF/SP.
No primeiro cenário, envolvendo ações propostas diretamente por municípios, os acordos firmados entre 2023 e 2024 previam deságios médios de 10% a 20%, contudo, condicionados, à renúncia expressa à execução da ação coletiva, o que, na prática, resultou em perdas líquidas que variaram entre 40% e 50% do valor global devido.
A partir de 2025, com os acordos firmados pelas capitais Recife e Salvador, a AGU passou a adotar um novo modelo, propondo deságios ainda mais severos, entre 30% e 40%, mantendo, igualmente, a exigência de renúncia a outros títulos em tramitação. Nessas hipóteses, o impacto financeiro foi ainda mais significativo, com perdas líquidas estimadas entre 60% e 70% do crédito originalmente executado.
Spacca
Em ambos os contextos, a conciliação ocorreu mediante cláusulas de adesão rígidas, com ingerência direta sobre a natureza e a destinação dos recursos, em afronta à lógica federativa e ao que foi assentado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 528[3], especialmente no tocante à vinculação das verbas educacionais e à natureza autônoma dos juros de mora.
Mas o que isso tem a ver com litigância predatória reversa?
A judicialização da complementação de valores do antigo Fundef revelou, nos últimos anos, não apenas uma dívida histórica da União com os municípios brasileiros, mas também um fenômeno jurídico preocupante: o uso estratégico da conciliação para reduzir perdas financeiras da administração pública federal. Trata-se de uma prática que se aproxima do que a doutrina especializada começa a identificar como litigância predatória reversa.
Esse conceito, ainda em consolidação, descreve o comportamento processual reiterado de réus em demandas de massa, que, optam por celebrar acordos padronizados com cláusulas inegociáveis, deságios expressivos e exigências que restringem direitos anteriormente reconhecidos, criando uma aparência de boa-fé e consensualismo que não se sustenta diante de uma análise substancial.
Cabe destaque à fala do ministro Herman Benjamin, proferida durante o debate do Tema Repetitivo nº 1.198, STJ[4]:
“É importante que nós alertemos a doutrina, e os juízes, que existe a litigância predatória reversa. Grandes litigantes, empresas normalmente, que se recusam a cumprir decisões judiciais, súmulas, repetitivos, texto expresso de lei. Quando são chamados, não mandam representante – ou então, mandam sem poderes para transigir, nos casos dos órgãos administrativos, que fazem a mediação. E nós estamos, muitas vezes, falando de 200 mil, 500 mil litígios provocados por um comportamento absolutamente predatório por parte de um dos agentes econômicos, ou do próprio Estado – porque o próprio Estado pode praticar, e pratica, comportamentos predatórios.”
Essa conduta inverte a lógica processual saudável. Valendo-se de todo o aparato estatal, a União passou a dificultar, de forma sistemática, a justa condução dos cumprimentos de sentença promovidos individualmente pelos municípios. Utilizou-se, para tanto, de ação rescisória com o intuito de suspender execuções já em curso; suscitou preliminares infundadas, muitas vezes baseadas em matérias que sequer foram objeto da fase de conhecimento; e desconsiderou reiteradas decisões de órgãos colegiados que já haviam reconhecido:
– a legitimidade ativa dos municípios;
– a competência da Justiça Federal no Distrito Federal para processar os feitos; e
– a legalidade da contratação de advogados especializados, por inexigibilidade de licitação, com base na notória especialização e na discricionariedade técnica do gestor público.
Além disso, passou a reinterpretar, de forma oportunista, os critérios de cálculo das diferenças do Fundef, valendo-se de instrumentos normativos supervenientes (NT 07/2018/MEC)[5], inexistentes à época da sentença de mérito ou mesmo da vigência da norma questionada, numa clara tentativa de reduzir os valores devidos e prolongar o litígio.
Em paralelo, promoveu alterações legislativas que aprofundam o desequilíbrio: a Emenda Constitucional nº 114/2021[6], que parcelou o pagamento dos precatórios do Fundef em até três exercícios financeiros, e a Lei nº 14.365/2022[7], que modificou o Estatuto da Advocacia para impedir o destaque de honorários contratuais, mesmo nos casos de contratação regular. Essas duas iniciativas revelam uma tentativa coordenada de restringir a efetividade na execução de direitos reconhecidos em juízo, gerando desequilíbrio federativo, pressão social e insegurança financeira.
Atualmente, sob o pretexto de conciliação, passaram a ser ofertadas propostas com deságios absurdos, sem prazos para análise, com imposição de suspensão processual e cláusulas que afrontam diretrizes constitucionais e jurisprudenciais, como a ADPF 528. Dentre os pontos mais preocupantes estão a desnaturação dos juros de mora, interferência indevida na aplicação dos recursos e a excessiva renúncia de receita.
Acordos com cláusulas prejudiciais à parte hipossuficiente
A litigância predatória reversa se caracteriza pela prática abusiva por parte de demandados, que propõem acordos massivos, muitas vezes com cláusulas prejudiciais à parte hipossuficiente, ou, ainda, utilizam a conciliação para simular boa-fé e evitar execuções definitivas de sentenças.
Trata-se, portanto, de uma estratégia que busca enfraquecer a posição negocial dos municípios, justamente no momento em que decisões judiciais caminham para consolidar o direito desses entes à integralidade dos valores do FUNDEF, com correção justa e respeito à destinação constitucional.
Acordo, sim! mas com controle de legalidade e boa-fé.
É nesse contexto que o “acordo” deve ser compreendido não como um fim em si mesmo, mas como instrumento de justiça distributiva e pacificação social.
Como já enfrentado, entendemos que a conciliação não pode ser convertida em instrumento para práticas abusivas. Como bem decidiu o STJ, no REsp 1.152.541/MG, de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão[8], o juiz deve exercer controle de legalidade e razoabilidade dos acordos, podendo recusar homologação se houver ofensa à ordem pública, à boa-fé ou aos direitos indisponíveis.
Nesse sentido, os desembargadores do TJ-ES Sérgio Ricardo de Souza e Fernando Estevam Bravin Ruy[9] destacam que “a repressão à litigância abusiva reversa é essencial não apenas para a eficiência processual, mas para a própria integridade do Estado democrático de direito, especialmente em sua dimensão de garantia fundamental do acesso à justiça”.
Natureza de complementação constitucional obrigatória
A propósito, o TCU, no Acórdão nº 2.631/2019 – Plenário[10], reconheceu expressamente que os valores do Fundef possuem natureza de complementação constitucional obrigatória e que os repasses realizados a menor pela União, fora dos parâmetros legais, geraram prejuízos mensuráveis aos entes subnacionais beneficiários.
O ideal seria que os municípios pudessem contar com apoio técnico, acesso à planilha-base da União e liberdade para discutir cláusulas específicas.
Por fim, concluímos que conciliação sem equilíbrio é imposição.
Os acordos da União sobre os repasses do Fundef não podem ser apresentados como soluções legítimas se, na prática, se baseiam em pressão institucional, condições unilaterais e restrição a direitos reconhecidos judicialmente. Isso é litigância predatória reversa em sua forma mais evidente: o uso da conciliação não como meio de pacificação social, mas como ferramenta de controle financeiro da própria derrota judicial.
É hora de reequilibrar esse jogo. O papel do Judiciário, dos agentes políticos e da OAB é fundamental para garantir que a reparação de uma dívida histórica com a educação básica brasileira não se converta em mais um capítulo de injustiça travestida de acordo.
Fonte: Conjur.com.br


